quinta-feira, 31 de março de 2011

Cartas sobre a situação ambiental no campo e na cidade.


Por Alberto Kirilauskas
 
A primeira carta foi redigida pelo Luciano Pizzato, e adaptada por Barbosa Melo - 
Luciano Pizzatto é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor do Parque Nacional e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.
A segunda, por sua vez, foi redigida pela Analista Ambiental do IBAMA, cujo o nome não farei referências aqui por não saber sobre o seu real interesse em divulgar o seu nome como autora, observado que na versão que me foi encaminhada através de uma lista de email cuja a autora faz parte, a carta não está explicitamente assinada.
Os dois textos contribuem para nossas reflexões sobre as alterações do código florestal, cuja a proposta de alteração tem gerado um intenso debate me diversos meios. Como a cobertura midiática tem se demonstrado parcial, como em muitos casos de interesse nacional e mundial, aqui segue visões distintas da mesma situação. Desejo que essas cartas estimulem nossas buscas por informações de qualidade.
Boa leitura.


Carta do Zé agricultor para Luis da cidade. 
Prezado Luis, quanto tempo. Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava. 
Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis? 
Pois é. Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos ai da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente. 
Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só à uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro tal de APPA que criaram aqui na vizinhança. 
Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis? 
Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né.) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário? 
Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encompridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca. 
Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscal e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo. 
Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora. 
Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né? 
Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado. 
Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora! Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes de ela cair por cima da casa.  
Fui ao escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui ao IBAMA da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso. Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos. 
Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisar de nós, os criminosos aqui da roça.
Até mais Luis. 
Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado, pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio. (Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.) _________________________________________________________________________________ 
Resposta do Luis para o Zé! 
Puxa Zé, que pena! Então você está mesmo decidido a vir para a cidade? É um direito seu, mas antes, quero te avisar de algumas coisas... . 
Infelizmente a vida por aqui não é tão maravilhosa quanto você pensa. A comida da gente não brota da geladeira não. Tem que trabalhar muito para conseguir comprar na feira, no supermercado... . E sabe que o dinheiro anda curto.
Gastamos muito com o tratamento das doenças respiratórias das crianças. Você deve lembrar que eu casei com a Joana da nossa turma, né? Tivemos dois filhos. Desde que nasceram, os meninos sofrem com uma rinite alérgica causada pela poluição do ar nas cidades. É cada vez tem mais carro e fábrica que polui o ar! 
Gastamos também com escola, pois há muita violência nas escolas do governo, assim, tivemos que optar por pagar colégio particular para nossos filhos. 
Além dos remédios para as crianças, gastamos também com o tratamento da Joana e da mãe dela. Acredita que as duas estão com câncer? E o médico acha que é por comer alimentos com muito agrotóxico... mas não tem como provar, e daí, as despesas médicas ficam por minha conta mesmo.  
Antes ela trabalhava como faxineira em diversas casas, mas sem registro. De vez em quando ela tinha que parar porque não aguentava de dor na coluna, mas nunca ficou parada tanto tempo quanto agora com a doença. E o pior é que não tem INSS que a socorra pois ela nem sabia que tinha que contribuir por conta própria já que as patroas não tinham esta obrigação. 
Por via das dúvidas, parei de comer verdura, mas agora estou com pressão alta e obesidade. Queria poder comprar orgânicos e ajudar os agricultores familiares, mas como o custo é muito alto, não temos escolha. 
Mas tem coisas boas por aqui também. Eu estou pagando a prestação de um carro há 4 anos e só faltam mais 3. O veículo é bom, mas tenho que gastar com manutenção e ajustes todo ano, antes de fazer a inspeção veicular. E sabe, Zé, paguei mais caro no carro bi-combustível, para poder colocar álcool nele, mas agora o preço dobrou e eu não dou mais conta. Parece que o setor sucro-alcoleiro está preferindo produzir açúcar pois no momento eles lucram mais com isto. Pelo menos agora eu não perco mais 3 horas na ida e 3 horas na volta durante os congestionamentos. O trânsito estava me matando! O problema é que, como os ônibus e metrô ficam muito cheios na hora de entrar e sair do trabalho, to tendo que entrar mais cedo e sair bem mais tarde. Na verdade, estou gastando mais tempo agora para ir de casa para o trabalho, mas pelo menos não fico mais nervoso com os motoqueiros, pedestres fora da faixa, pessoas que fecham os cruzamento, carros em fila dupla, etc. 
Me perguntam porque eu resolvi trabalhar tão longe de casa... Sabe como é, emprego está difícil. Eu fiquei vários anos sem trabalho mesmo tendo faculdade, e quando surgiu esta vaga de técnico-assistente, nem pensei na distância, aceitei na hora.
E sobre o rio daqui da cidade, meu amigo, sinto dizer, mas ele é poluído também. Acredita que boa parte do meu salário vai para o pagamento de impostos, e mesmo assim o governo não investe em tratamento dos esgotos? E as indústrias? Além de poluir o ar, muitas delas jogam poluentes nos rios! E os fiscais do meio ambiente não podem fazer nada, pois são poucos e não tem dinheiro nem para pagar a gasolina das viaturas. Isto porque, os políticos só falam que a Natureza é importante, mas na hora de investir e destinar verba para o meio ambiente, concursos, etc., que nada! O orçamento do setor é menor até que o da cultura e do turismo. 
Ah, e esta coisa de multa, né? Eu entendo que revolta... Eu também fui multado pois na festinha de aniversário do meu mais novo, colocamos a música um pouco mais alta do que o permitido. E também quando cortei uma árvore que estava caindo na frente da minha casa. Assim como você, pedi autorização, mas a Prefeitura não mandou um perito, só um fiscal que me puniu quando eu perdi a paciência de esperar e cortei tudo mesmo. Não adiantou eu ter plantado uma muda no lugar... . Nos falaram exatamente o que você disse, que a Lei é para todos. 
Zé, se prepare pois aqui tem que pagar pela água também! E a conta de luz é uma facada! 
Mas enfim, será bem vindo em minha casa! Apenas gostaria que você, antes de vir, desse um recado aos seus vizinhos, agricultores familiares: 
Não sei se vocês sabem, mas estão querendo mudar a principal Lei que protege as florestas brasileiras, o Código Florestal. E estão usando os pequenos proprietários para favorecer os grandes empresários do agronegócio, que tanto lucram neste país!
Tem um deputado aí, que se dizia comunista e tal, mas que agora está na defesa dos interesses dos grandes latifundiários! Ele mente, dizendo que está defendendo os interesses dos pequenos, mas omite que no Código Florestal em vigor, a Lei 4.771/65, já existe uma série de privilégios para a pequena propriedade dos agricultores familiares: Podem computar na RL, os plantios de árvores frutíferas ornamentais ou industriais, compostos por espécies exóticas, cultivadas em sistema intercalar ou em consórcio com espécies nativas (Art. 16, § 3º); Podem sobrepor APP e RL quando a soma das duas exceder a 25% da área da propriedade (nos casos previsto no inciso III, § 6º do Art.16); A averbação da RL é gratuita (§ 9º do Art. 16); Os procedimentos para a comprovação de necessidade de conversão de florestas para uso alternativo do solo em propriedade rural que já possua área desmatada, são simplificados (I, § 3º, Art. 37-A).
E o pior, ele não diz para as pessoas que, com a diminuição das florestas, os rios poderão ficar assoreados e diminuir a disponibilidade de água; a fauna não terá local de viver e algumas espécies como as cobras, poderão ir para as casas das pessoas procurar alimento; insetos e pragas poderão atacar as lavouras, pois os seus inimigos naturais como pássaros e sapos serão dizimados; aumentará o calor e as chuvas torrenciais; haverá mais deslizamentos de terra e mortes; plantas medicinais poderão desaparecer para sempre; o Brasil ficará mal visto frente a comunidade internacional; a anistia que se dará a quem cometeu crime ambiental levará a um descrédito da legislação como um todo, dentre muitas outras coisas ruins, para quem vive no campo e na cidade. 
 Grande abraço, Luis da Cidade.

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