domingo, 9 de outubro de 2011

A dimensão do conhecimento: rumo a uma abordagem ecossocial


Por Marina Peres Barbosa

Este artigo relaciona o campo da saúde do trabalhador à temática ambiental, tendo por referências o enfoque ecossocial, a ecologia política e o movimento pela justiça ambiental, cada qual destacando uma dimensão específica: no enfoque ecossocial, a dimensão do conhecimento, com ênfase no desenvolvimento de análises integradas e na análise do papel da ciência e sua necessária renovação, sem a qual a luta política pode recair em ideologias simplistas baseadas em ciências positivistas e fragmentadas, as quais ignoram a complexidade dos problemas socioambientais e suas incertezas; na abordagem da ecologia política e no conceito de justiça ambiental é dada maior ênfase à dimensão do poder a partir da (re)produção das relações de dominação centro-periferias marcadas pelo desprezo sobre as pessoas e a natureza; e finalmente no movimento pela justiça ambiental é realçada a dimensão da ação gerada pela consciência que inúmeros problemas ambientais possuem sua origem em um modelo de desenvolvimento injusto, particularmente para com as populações mais pobres e discriminadas. 

A dimensão do conhecimento: rumo a uma abordagem ecossocial

Recentemente alguns autores da saúde pública vêm se destacando na discussão sobre a integração de abordagens ecossistêmicas e sociais no entendimento de problemas de saúde da população. Em um artigo de referência sobre o tema, Levins & Lopez (1999) fazem isso tendo como ponto de partida a discussão acerca dos paradoxos do sistema de saúde pública dos EUA, o qual gasta bem mais que outros países e se encontra entre os piores do mundo industrializado em termos de indicadores de saúde. Os investimentos centram-se num modelo médico-assistencialista caro, iníquo e ineficaz, sem atuar mais efetivamente nos modos de vida e nos ambientes que afetam a saúde das populações. Um modelo alternativo na análise de problemas de saúde de caráter preventivo, denominado pelos autores de ecossocial, deveria incorporar uma visão mais holística acerca das complexidades que caracterizam a saúde no nível das populações, tendo por referência movimentos e correntes intelectuais como a saúde de ecossistemas, a justiça ambiental, a determinação social e a saúde para todos.
Não é somente o agravamento da crise ecológica que vem produzindo um maior interesse por questões teórico metodológicas voltadas para a compreensão da complexidade e ao desenvolvimento de análises integradas no enfrentamento de problemas de saúde. As doenças transmissíveis, cujo sucesso no seu enfrentamento marcou a ampla institucionalização da saúde pública como um dos pilares das sociedades modernas, também vêm colocando novos desafios. Alguns exemplos recentes são o recrudescimento de diversas doenças endêmicas em áreas onde já se encontravam controladas; o surgimento de novos problemas como a Aids e a hepatite C; e o aumento da resistência de muitos agentes infecciosos aos antibióticos (Sabroza e Waltner-Toews, 2001). Tais fatos, além da persistência das desigualdades socioeconômicas em várias regiões, contribuem para romper com a idéia de que a transição epidemiológica – passagem de um quadro de morbimortalidade marcado pelas doenças do "atraso" e da "pobreza" para doenças típicas das sociedades modernas – ocorreria linearmente através da superação do "subdesenvolvimento" socioeconômico e da modernização institucional e técnico científica das sociedades (Possas, 2001).
Um aspecto básico da abordagem ecossocial proposta por Levins & Lopez (1999) estaria no reconhecimento dos níveis e características que marcam a complexidade dos problemas de saúde das populações. Quanto maiores forem as fronteiras dos sistemas socioambientais analisados, maiores serão as escalas espaciais e temporais envolvidas, implicando incertezas e dificuldades a serem superadas, ou pelo menos explicitadas, por análises integradas. Para tanto, é necessário superar as dicotomias que caracterizam as ciências atuais no campo da saúde, através de uma compreensão da natureza sistêmica dos problemas de saúde e do respeito às dinâmicas dos ecossistemas. Uma das tarefas no desenvolvimento de abordagens ecossociais é a de reeducar nossas percepções e intuições em torno da compreensão de realidades complexas, fazendo com que conceitos provenientes da teoria de sistemas e da ecologia evolucionária – como retroalimentação (feedback), conectividade e transições de fase – sejam tão familiares quanto os conceitos e métodos estatísticos tradicionais – como a regressão linear – o são para as ciências positivistas.
Também Krieger (2001), em seu artigo de revisão, caminha na mesma direção dos autores anteriores ao apontar a importância da perspectiva ecossocial para a epidemiologia social melhor compreender os problemas atuais da saúde das populações. O objetivo dessa perspectiva não é o de ser uma teoria totalizante para explicar tudo – e conseqüentemente nada –, mas sim produzir um conjunto de princípios integrais, e, na medida do possível, empiricamente verificáveis, que orientem a investigação e as ações práticas, inclusive no reconhecimento de suas incertezas e limitações. Isso se torna mais relevante atualmente diante das promessas da moderna biotecnologia, impulsionada pelos avanços recentes da biologia molecular. A nova onda dos OGMs e das terapias genéticas renovam as tensões entre paradigmas e interesses nas discussões públicas sobre os fatores que mais influenciam a saúde, como a carga genética, o comportamento individual e as condições sociais, de trabalho e ambientais. A biotecnologia, movida pelos interesses econômicos de curto prazo através de programas de P&D das grandes corporações em torno das aplicações da genética, vem renovando o paradigma médico-assistencialista e a ideologia do otimismo tecnológico (Strand, 2001), cujo caráter reducionista, despolitizador e individualista precisa ser enfrentado pelo desenvolvimento de enfoques ecossociais que avancem na integração de dimensões sociais e biológicas.
Um dos pilares para uma visão ecossocial dos problemas de saúde encontra-se no desenvolvimento da chamada abordagem ecossistêmica em saúde. No Brasil esta abordagem foi colocada recentemente pelo artigo do canadense Waltner-Toews (2001). Para o autor, é necessário serem superados os modelos causais mais lineares usados por epidemiologistas e pesquisadores do campo biomédico pautados na coleta pos-facto de doenças e mortes. A questão ecológica e discussões sobre promoção da saúde reforçam a idéia que a saúde é muito mais que a ausência de doenças, e que muitas medidas isoladas de redução de doenças podem gerar efeitos contrários aos esperados. Para tanto, uma abordagem ecossistêmica em saúde passaria pela combinação de vários insights provenientes da ecologia, das teorias sobre sistemas complexos, do desenvolvimento de análises integradas e metodologias participativas, dentre outras perspectivas teórico-metodológicas que vêm assumindo um papel de relevância no campo ambiental. Elas forneceriam as bases intelectuais e metodológicas para a construção de processos sociais e decisórios que possibilitem soluções adaptativas criativas de problemas dentro de uma perspectiva participativa e democrática.
Compreender problemas de saúde a partir de um enfoque ecossocial é fundamental para que propostas de desenvolvimento econômico e tecnológico possam resultar em balanços mais positivos entre os benefícios e os prejuízos dele decorrentes. Especialmente para o campo da saúde pública tal desafio é estratégico para desenvolver e implementar ações de promoção da saúde. Dessa forma a saúde pública poderia melhor considerar as interações que continuam a ser ignoradas em várias visões e políticas de saúde orientadas pelo paradigma biomédico ou por uma visão ecológica reducionista. Podemos, resumidamente, citar alguns exemplos de como visões reducionistas podem gerar intervenções problemáticas.
• Uma área rural relativamente conservada, ao ser modificada pela expansão agrícola, pela construção de vias de transporte ou pelo crescimento de áreas urbanas, pode ter reduzido o número de predadores naturais de roedores e insetos transmissores de certas doenças, ocasionando a emergência de surtos epidêmicos ou endêmicos.
• Por sua vez, medidas de controle de endemias podem contribuir para a contaminação e exposição de áreas e populações atingidas pelos inseticidas tóxicos, inclusive os trabalhadores responsáveis por sua aplicação.
• A difusão e o abuso no uso de antibióticos podem, no médio prazo, fortalecer a resistência de vários microorganismos que originalmente pretendiam combater.
• Medidas de conforto ambiental em climas tanto quentes quanto frios podem favorecer o surgimento da chamada síndrome do edifício doente, que afeta a saúde das pessoas que nele circulam por meio de contaminação química e microbiológicas da atmosfera.
Os exemplos anteriores realçam uma dimensão fundamental abordada pelo enfoque ecossocial: a do conhecimento, a qual se desdobra na necessidade de superarmos o atual modelo hegemônico de se fazer ciência. Como observou Bruno Latour em sua metáfora (apud Funtowicz e Ravetz, 1993), o lugar da ciência moderna pode ser imaginado através dos trabalhos pioneiros de Pasteur na saúde pública, com a conquista e domesticação de uma natureza ameaçadora pelo mundo do laboratório científico. Mas a crise ecológica contemporânea vem fazendo com que haja uma inversão: agora é a natureza que "reinvade" o mundo do laboratório, com riscos globais em alcance e complexos em sua estrutura, escancarando os limites da ciência e instituições modernas de compreendê-los e controlá-los.
Para Funtowicz e Ravetz (1997), o modelo hegemônico de ciência tem sua origem na análise de fenômenos fisicalistas do mundo inanimado, que com seus modelos preditivos quantitativos relativamente precisos tanto sucesso produziram no desenvolvimento das engenharias, tecnologias e produtos que fazem parte da vida moderna. Contudo, tanto a complexidade ordinária do mundo da vida biológica quanto a complexidade emergente ou reflexiva do mundo do humano tendem a ser menosprezadas por um modelo de ciência normal, no sentido dado por Kuhn (1987), o qual separa as várias disciplinas científicas por paradigmas rígidos que recortam excessivamente a realidade e não se comunicam entre si.
Como no verso de Fernando Pessoa – Navegar é preciso / Viver não é preciso – ou ainda de outro poeta que viveu no século 14, o italiano Petrarcha, que escreveu A navegação é uma ciência exata, em comparação com a vida, que sabemos onde começa e jamais onde termina, o drama da ciência moderna continua sendo o de enfrentar a complexidade e os mistérios do viver, fornecendo sentido às ações humanas. Mas a resolução dada pela ciência normal a este drama tem sido negar boa parte da complexidade através de sua crescente especialização, afirmando mais suas certezas através da pretensa precisão de números gerados por modelos quantitativos complicados, e não reconhecendo ou mesmo ocultando suas incertezas e ignorâncias.
Muitos dos problemas socioambientais relevantes da atualidade trazem à tona os limites da ciência normal, pois possuem um elevado nível de complexidade, alto grau de incertezas e disputa de valores, ao mesmo tempo em que necessitam tomadas de decisões emergenciais. Nesses casos, as abordagens escolhidas para analisar tais problemas precisam incorporar seus aspectos essenciais, os quais envolvem múltiplas dimensões e são tanto quantitativos quanto qualitativos. Aqui o critério de qualidade na produção de conhecimento deve passar pela construção de abordagens integradoras e contextualizadas, que propiciem o diálogo entre as diversas áreas de conhecimento e destas com o público, ao mesmo tempo em que reconheçam e explicitem as incertezas e os valores em jogo. Uma ciência ética e transdisciplinar, denominada por Funowicz & Ravetz (1994, 1997) de ciência pós-normal, a qual reconheça e enfrente a complexidade, e também promova a participação legítima de todos os envolvidos através de uma comunidade ampliada de pares.

Fragmento extraído de : Ciênc. saúde coletiva v.10 n.4 Rio de Janeiro out./dez. 2005 - Saúde do trabalhador e o desafio ambiental: contribuições do enfoque ecossocial, da ecologia política e do movimento pela justiça ambiental.

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