quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Construir povos

Por Alberto Kirilauskas

Segue um texto do Rubem Alves contido no livro Conversas sobre Política que fala sobre a inauguração de povos. Nietzsche disse que "...o mundo gira, não ao redor dos inventores de estrondos novos, mas à roda dos inventores de valores novos: gira sem ruído...".Acredito que as palavras do Nietzsche dialogam com as do Rubem Alves. Desconfio que quando a imagem/status está acima da utopia devemos parar e rever se realmente desejamos seguir por esse caminho já pisado por tantos nesse mundo contemporâneo. Boa leitura.

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Construir povos

Não me recordo de nenhuma obra que Gandhi tenha ianugurado. Mas me lembro bem de outros gestos seus. Como uma longa caminhada que fez rumo ao mar, quando tinha 61 anos de idade. Mais de quatrocentos quilômetros, 24 dias, 18 quilômetros por dia. Para quê? A Inglaterra, potência colonial dominadora, proibira que os indianos possuíssem qualquer sal que não lhes tivesse sido vendido pelo monopólio governamental inglês. Gandhi resolveu caminhar até o mar para ali transgredir a vontade dos dominadores: tomar nas mãos o sal que o mar e o sol haviam colocado sobre as rochas. Gesto mínimo, fraco, que não seria marcado por nenhuma fita cortada nem por nenhuma placa de bronze. Há situações em que a quebra da lei é a única forma de se ser íntegra. Bem que poderia ter ido em lombo de animal ou em vagão de trem. Seria mais rápido, mais cômodo. Os políticos que se prezam têm horror a lentidão. Por isso se concedem atributos divinos de onipresença: agora estão aqui, mas num abrir de olhos estão ali. Voam pelos espaços para se fazer ver e inaugurar...Gandhi pensava diferente. Sabia que a vida cresce devagar.
Mundos melhores não se fazem; eles nascem...
(E.E. Cummings)
Não queria inaugurar coisa alguma. Queria gerar um povo. E isso leva tempo, como uma gravidez. Era preciso que a caminhada demorasse, para que as pessoas caminhassem com ele e, com ele, sonhassem. E, enquanto ele ia, crescia, na alma do seu povo, o sonho...
Também não me recordo de nenhuma obra que Martin Luther King Jr. Tenha inaugurado. Mas me lembro do seu rosto sereno por fora, amedrontado por dentro. Quem não teria medo do ódio dos brancos? Marchava de mãos vazias, mãos dadas e, qual num poema, seu refrão se repetia: “Eu tenho um sonho”. Queria também gerar um povo e sabia que um povo acontece quando as pessoas se dão as mãos, em busca de um sonho comum. “Eu tenho um sonho.” Era o sonho de um povo que se formava, lagarta que saía do casulo, para voar como borboleta. Eram palavras mágicas que evocavam esperanças esquecidas e invocavam utopias de um mundo novo. Não inaugurou obras. Pois sabia que, antes delas, é preciso que haja um povo.
Pensei, então que já dois tipos de políticos:
· os que se oferecem aos olhos do povo;
· e os que oferecem novos olhos ao povo.
Os primeiros ficam cada vez mais visíveis. Suas imagens produzidas-polidas-ensaiadas aparecem nos jornais, nos cartazes, na TV, como a madrasta da Branca de Neve, não se cansam de perguntar: “ Espelho, espelho meu, haverá neste país político mais bonito que eu?” E fazem promessas, e inauguram obras, e se proclamam como aqueles que têm o poder de transformar os desejos do povo em realidade. “Tudo isto será teu”, disse o Diabo ao Filho de Deus, “se prostrado me adorares...” E assim, pela sedução das coisas que se dão, as pessoas se cendem por preço baixo. Como na estória bíblica, troca-se a dignidade de se ser filho por um prato de ervilhas. E o povo, então, fica fraco, pedinte, agradecido. Em resumo: eleitorado fiel.
Mas os líderes que inauguram povos são de outro tipo. Vão ficando, progressivamente, invisíveis. Como na tela de Salvador Dalí, A última ceia. O cenário é vítreo e se abre para as montanhas, para os mares, para o futuro. O próprio Filho de Deus está em via de desaparecer, transparente, para que através de sua invisibilidade o mundo inteiro possa ser visto. Assim são os líderes que inauguram povos. Sabem que o que importa não é que sejam vistos pelo povo, mas que o povo possa ter um mundo novo através deles. Não se preocupam com a admiração narcísica de sua imagem. Mas desejam muito que o povo aprenda a admirar horizontes novos para onde caminhar.
Mas os inauguradores de obras, por não sonharem os sonhos do povo, em cada obra que inauguram, inauguram-se a si mesmos – e tratam de gravar-se em placas de metal pois sabem que, se não fosse o bronze, seriam logo esquecidos.
Tento descobrir transparências nos rostos políticos. Porgunto-me sobre os sonhos que eles me fazem sonhar. Mas só tenho pesadelos: rostos opacos que obstruem horizontes.
E assim, fico à espera: quando o rosto, e o corpo, e os gestos, e as cicatrizes de batalhas passadas me fizerem sorrir, sentirei que posso confiar. Por quanto tempo esperarei? Não sei...

Um comentário:

  1. Texto simplesmente magnífico!!!!
    Gostaria de superar a sensação de impotência.
    Gostaria que a semente brotasse e como uma gigantesca árvore fincasse suas raízes e produzisse frutos.
    Frutos cônscios de seus direitos e de seus deveres!
    cônscios que são um só povo e precisam ser coautores da nossa História.

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